UMA SAÍDA PARA O BRASIL - 765 – 24.11.2020
"Há indícios de que
os tribunais superiores se deram conta de que o futuro da democracia depende em
boa medida deles", avalia o sociólogo Boaventura de Sousa Santos
O Brasil está numa
encruzilhada existencial de uma dimensão difícil de imaginar. É o país do mundo
com um dos maiores desastres humanitários causados pela pandemia. É o país que
viveu dois graves atentados à democracia num curto espaço de tempo: o golpe
jurídico-político contra a presidente Dilma Rousseff, em 2016, e a grotesca
manipulação judicial-política que levou à condenação sem provas do
ex-presidente Lula da Silva, em 2018.
É o país governado por
um presidente que ganhou as eleições depois de o seu rival ter sido ilegalmente
neutralizado e, mesmo assim, com a ajuda de uma avassaladora avalanche de
notícias falsas. É o país governado por um presidente manifestamente
incompetente para exercer o cargo e também defensor da ditadura militar que
governou o país entre 1964 e 1985 e da tortura de opositores democráticos, e
que chega a pôr sob vigilância defensores dos direitos humanos, por alegadas
atividades…antifascistas; é ainda cúmplice ativo do genocídio em curso no
Brasil contra a população indígena e contra a população pobre, sobretudo negra.
É o único governante do
mundo que continua a negar a gravidade da situação pandêmica e recusa declarar
luto nacional pela morte de tantos milhares de brasileiros. Um governante que
faz propaganda de um produto sem comprovação científica da sua eficácia, a
cloroquina, produzida por um empresário de quem o governo adquiriu um estoque
suficiente para abastecer o país durante 18 anos a um preço seis vezes superior
ao que comprou o mesmo medicamento no ano passado. É o país onde os grandes
meios de comunicação mostraram ao longo dos anos um total desprezo pelas regras
de convivência humana e democrática.
É o país onde os EUA
puderam infiltrar o sistema judicial com mais facilidade e eficácia para fazer
alinhar a política externa do país com os interesses norte-americanos no
continente e para destruir a economia do país em algumas áreas concorrentes com
as empresas norte-americanas.
É, finalmente, o país
onde, apesar de tudo isto, e no aparente funcionamento normal das instituições
democráticas, a popularidade do presidente, que desceu bastante nos primeiros
meses da pandemia, volta a crescer e o posiciona para um segundo mandato a
partir de 2022.
Perante isto, a única
saída possível para o Brasil é, o mais tardar em 2022, poder pôr fim
democraticamente ao pesadelo infernal do bolsonarismo. Apesar de muito dano
irreversível ter sido feito, a saída consistirá em os brasileiros e as
brasileiras sentirem política e psiquicamente que acordaram de um pesadelo, que
estão vivos apesar de tantos entes queridos perdidos e que um novo dia nasce e
um novo começo volta a ser possível. Quais são as condições para isso?
Primeiro, o presidente e
o seu clã devem ser investigados seriamente e, por tudo o que se conhece concluir
que há indícios suficientes para serem acusados, julgados e presos. Aliás, no
plano internacional, já foram apresentadas várias queixas-crime no Tribunal
Penal Internacional da Haia contra a pessoa do presidente Bolsonaro pelo modo
como conduziu o país durante a crise pandêmica, queixas por crime contra a
humanidade e, no caso dos povos indígenas, por genocídio.
Segundo, os artífices da
grave degradação da democracia nos últimos anos, os juízes e procuradores do
Ministério Público, que conduziram as investigações a partir de Curitiba,
cometeram tantos e tais atropelos que devem ser excluídos da função que
desonraram, como devem ser julgados por todas as garantias processuais que eles
negaram às vítimas da sua manipulação.
Particularmente Sérgio
Moro, deve ser definitivamente afastado da vida política. Como foi possível que
um medíocre juiz federal de primeira instância assumisse jurisdição nacional e
se arrogasse o poder de violar as mais elementares hierarquias do sistema
judicial?
Terceiro, o ex-presidente
Lula da Silva deve recuperar plenamente os seus direitos políticos em face da
diabólica armadilha de que foi vítima e cujos mais grotescos traços começam a
ser conhecidos.
Quarto, as forças
políticas de esquerda têm de se convencer de que estão perante uma situação
política excepcional a exigir comportamentos excepcionais e que discutir neste
momento se o PSB (Partido Socialista Brasileiro) ou o PDT (Partido Democrático
Trabalhista) são ou não de esquerda, ou furtar-se a articulações com um amplo
leque de forças democráticas com vista às próximas lutas eleitorais, são atos
de suicídio político que o país se encarregará de lhes lembrar nos próximos
anos.
Quinto, os movimentos
sociais e organizações da sociedade civil têm de acordar da sonolência
inquietante que lhes foi incutida pela vida relativamente fácil que tiveram
durante os governos de Lula da Silva. O país do Fórum Social Mundial é hoje um
embaraço para todos os democratas e ativistas do mundo que viram no Brasil, no
início da década de 2000, o país líder de uma nova época de mobilizações
sociais incisivas e pacíficas guiadas pela ideia inaugural de que “um outro
mundo é possível”.
Estas são as principais
condições. As três primeiras estão nas mãos do poder judicial do Brasil. Há
indícios de que os tribunais superiores se deram conta de que o futuro da
democracia depende em boa medida deles. Cometeram muitos erros no passado
recente, foram cúmplices, ante flagrantes violações do garantismo processual
que é a razão de ser do sistema judicial numa democracia. Mas há sinais de que
serão a primeira instituição a acordar do pesadelo bolsonarista, e não há neste
momento razões para duvidar de que estarão à altura do encargo histórico que
lhes cabe. Certamente já se deram conta de que serão as próximas vítimas, se a
ilegalidade continuar à solta e impune. Não devem deixar-se intimidar por
grupelhos extremistas nem pelo gabinete do ódio.
Têm alguns bons exemplos
no continente de que os tribunais sabem por vezes assumir a responsabilidade
que lhes cabe num dado momento histórico. Afinal, quem poderia imaginar que o
mais poderoso político da Colômbia, Álvaro Uribe, senador, ex-presidente do
país, responsável impune por muitos crimes e pela destruição dos acordos de paz
com a guerrilha, fosse posto em detenção domiciliar para não obstruir a Justiça
que o julgará por uma decisão unânime do Tribunal Supremo?
Nenhum comentário:
Postar um comentário