Estou reprisando uma coluna publicada neste espaço ainda em 2018. Continua atual. Boa leitura.
757 - A ORIGEM DA
BURRICE NACIONAL
Repetidamente um fenômeno tem chamado a
atenção de professores estrangeiros que vêm lecionar no Brasil: por que nossas
crianças estão entre as mais inteligentes do mundo e nossos universitários
entre os mais burros? Como é possível que um ser humano dotado se transforme,
decorridos quinze anos, incapaz de montar uma frase com sujeito e verbo? É
fácil lançar a culpa no governo e armar em torno do assunto mais um falatório
destinado a terminar, como todos, em uma nova extorsão de verbas oficiais.
Difícil é admitir que um problema tão
geral deve ter causas também gerais, isto é, que não pertence àquela classe de
obstáculos que podem ser removidos pela ação oficial, mas àquela outra que só
nós mesmos, o povo, a “sociedade civil”, estamos à altura de enfrentar,
mediante a convergência lenta e teimosa de milhões de ações anônimas, longe dos
olhos da nossa vã sociologia.
A condição mais óbvia para o
desenvolvimento da inteligência é a organização do saber. Nossas energias
intelectuais mobilizam-se mais facilmente em torno de poucos núcleos de
interesse do que numa dispersão de focos de atenção espalhados no ar como
mosquitos. Discernir o importante do irrelevante é o ato inicial da
inteligência, sem o qual o raciocínio nada pode senão patinar em falso em cima
de equívocos. A cultura na sociedade é resultado de sucessivas filtragens da experiência
acumulada a ponto de ser o homem um quadro de interesse essencial. Nesse
quadro, não restaria ao indivíduo outra alternativa senão operar neste
“mostruário”, conforme seus interesses pessoais.
Quando se diz que a cultura está
impregnada na sociedade, significa que a seleção dos pontos importantes
transparece na organização das cidades, nos monumentos públicos, no estilo
arquitetônico, nos museus, nos cartazes dos teatros, na imprensa, nos debates
entre as pessoas letradas, nos giros da linguagem corrente, nas estantes das
livrarias e nos programas de ensino.
Quem desembarca num país qualquer da
Europa já obtém, por um primeiro exame desse mostruário, uma visão clara dos
pontos de interesse que constituem um fundo de referência cultural.
Só de andar pelas ruas, o cidadão pode
enxergar os marcos que o situam num lugar preciso do mapa histórico, desde o
qual ele pode medir quanto tempo as coisas duraram e qual a sua importância
para a vida humana.
Se olha para os cartazes dos teatros,
nota que certas peças estão sendo reencenadas este ano porque são reencenadas
todos os anos, ao passo que outras, que fizeram algum sucesso no ano passado,
desapareceram do repertório. Basta isto para que adquira um senso da diferença
entre o que importa e o que não importa.
Ao entrar em qualquer livraria, o
contraste entre as estantes onde estão sempre expostos os mesmos títulos
essenciais e aquelas onde os lançamentos mais recentes se revezam mostra-lhe a
diferença entre o patrimônio escrito de valor permanente e o comércio livreiro
de alta lucratividade.
Na escola, ele sabe que vai aprender
coisas que seus pais, avós e bisavós também aprenderam, e outras que são novidade
e que talvez terão desaparecido do currículo na geração seguinte.
Tudo, no ambiente plástico e verbal
contribui para que o indivíduo adquira um senso de hierarquia e de orientação
no tempo histórico, na cultura, na humanidade.
No Brasil, isso não existe. O ambiente
visual urbano é caótico e disforme, a divulgação cultural parece calculada para
tornar o essencial indiscernível do irrelevante. O que surgiu ontem para
desaparecer amanhã assume o peso das realidades milenares, os programas
educacionais oferecem como verdade definitiva opiniões que vieram com a moda e
desaparecerão com ela. Tudo é uma agitação superficial infinitamente confusa
onde o efêmero parece eterno e o irrelevante ocupa o centro do mundo. Nenhum
ser humano, mesmo genial, pode atravessar essa selva selvagem e
sair intelectualmente ileso do outro lado.
Largado no meio de um caos de valores e
contravalores indiscerníveis, ele se perde numa densa malha de dúvidas ociosas
e equívocos elementares, forçado a reinventar a roda e a redescobrir a pólvora.
Nesse ambiente, a difusão das novidades
intelectuais, em vez de fomentar discussões inteligentes, só pode atuar como
força dispersante. Não há nada mais consternador do que uma inteligência sem
cultura, despreparada, nua e selvagem que se nutre do último show e arrota uma
sucessão de perguntas cretinas onde a sofisticação pedante do raciocínio se
apoia na mais grosseira ignorância dos fundamentos do assunto. Acrescente-se a
esses ingredientes a arrogância juvenil estimulada pelas lisonjas demagógicas
da mídia, e tem-se a fórmula média do estudante universitário brasileiro. É impossível
discutir com ele. Quando a mente assim deformada entra a produzir objeções numa
discussão, seu interlocutor culto e bem-intencionado, se não é muito enérgico
no emprego da vara de marmelo, leva desvantagem necessariamente: quem pode
vencer um debatedor tenaz que, confiante na aparente correção formal do seu
raciocínio, está protegido pela própria ignorância contra a percepção da
falsidade das premissas? Com um sujeito assim não cabe argumentar. Cabe apenas
transmitir-lhe as informações faltantes — educá-lo, em suma. Mas, precisamente,
ele não vai deixar você educá-lo, porque
a ideologia de rebelde posudo que lhe incutiram desde
pequeno o faz pensar que é mais bonito humilhar um professor do que aprender
com ele. Eis como o menino inteligente se transforma num debatedor idiota,
vacinado para todo o sempre contra qualquer conhecimento do assunto em debate.