quinta-feira, 23 de julho de 2020

757 - ORIGEM DA BURRICE NACIONAL


       Estou reprisando uma coluna publicada neste espaço ainda em 2018. Continua atual. Boa leitura

757 - A ORIGEM DA BURRICE NACIONAL
Repetidamente um fenômeno tem chamado a atenção de professores estrangeiros que vêm lecionar no Brasil: por que nossas crianças estão entre as mais inteligentes do mundo e nossos universitários entre os mais burros? Como é possível que um ser humano dotado se transforme, decorridos quinze anos, incapaz de montar uma frase com sujeito e verbo? É fácil lançar a culpa no governo e armar em torno do assunto mais um falatório destinado a terminar, como todos, em uma nova extorsão de verbas oficiais.
Difícil é admitir que um problema tão geral deve ter causas também gerais, isto é, que não pertence àquela classe de obstáculos que podem ser removidos pela ação oficial, mas àquela outra que só nós mesmos, o povo, a “sociedade civil”, estamos à altura de enfrentar, mediante a convergência lenta e teimosa de milhões de ações anônimas, longe dos olhos da nossa vã sociologia.
A condição mais óbvia para o desenvolvimento da inteligência é a organização do saber. Nossas energias intelectuais mobilizam-se mais facilmente em torno de poucos núcleos de interesse do que numa dispersão de focos de atenção espalhados no ar como mosquitos. Discernir o importante do irrelevante é o ato inicial da inteligência, sem o qual o raciocínio nada pode senão patinar em falso em cima de equívocos. A cultura na sociedade é resultado de sucessivas filtragens da experiência acumulada a ponto de ser o homem um quadro de interesse essencial. Nesse quadro, não restaria ao indivíduo outra alternativa senão operar neste “mostruário”, conforme seus interesses pessoais.
Quando se diz que a cultura está impregnada na sociedade, significa que a seleção dos pontos importantes transparece na organização das cidades, nos monumentos públicos, no estilo arquitetônico, nos museus, nos cartazes dos teatros, na imprensa, nos debates entre as pessoas letradas, nos giros da linguagem corrente, nas estantes das livrarias e nos programas de ensino.
Quem desembarca num país qualquer da Europa já obtém, por um primeiro exame desse mostruário, uma visão clara dos pontos de interesse que constituem um fundo de referência cultural.
Só de andar pelas ruas, o cidadão pode enxergar os marcos que o situam num lugar preciso do mapa histórico, desde o qual ele pode medir quanto tempo as coisas duraram e qual a sua importância para a vida humana.
Se olha para os cartazes dos teatros, nota que certas peças estão sendo reencenadas este ano porque são reencenadas todos os anos, ao passo que outras, que fizeram algum sucesso no ano passado, desapareceram do repertório. Basta isto para que adquira um senso da diferença entre o que importa e o que não importa.
Ao entrar em qualquer livraria, o contraste entre as estantes onde estão sempre expostos os mesmos títulos essenciais e aquelas onde os lançamentos mais recentes se revezam mostra-lhe a diferença entre o patrimônio escrito de valor permanente e o comércio livreiro de alta lucratividade.
Na escola, ele sabe que vai aprender coisas que seus pais, avós e bisavós também aprenderam, e outras que são novidade e que talvez terão desaparecido do currículo na geração seguinte.
Tudo, no ambiente plástico e verbal contribui para que o indivíduo adquira um senso de hierarquia e de orientação no tempo histórico, na cultura, na humanidade.
No Brasil, isso não existe. O ambiente visual urbano é caótico e disforme, a divulgação cultural parece calculada para tornar o essencial indiscernível do irrelevante. O que surgiu ontem para desaparecer amanhã assume o peso das realidades milenares, os programas educacionais oferecem como verdade definitiva opiniões que vieram com a moda e desaparecerão com ela. Tudo é uma agitação superficial infinitamente confusa onde o efêmero parece eterno e o irrelevante ocupa o centro do mundo. Nenhum ser humano, mesmo genial, pode atravessar essa selva selvagem e sair intelectualmente ileso do outro lado.
Largado no meio de um caos de valores e contravalores indiscerníveis, ele se perde numa densa malha de dúvidas ociosas e equívocos elementares, forçado a reinventar a roda e a redescobrir a pólvora.
Nesse ambiente, a difusão das novidades intelectuais, em vez de fomentar discussões inteligentes, só pode atuar como força dispersante. Não há nada mais consternador do que uma inteligência sem cultura, despreparada, nua e selvagem que se nutre do último show e arrota uma sucessão de perguntas cretinas onde a sofisticação pedante do raciocínio se apoia na mais grosseira ignorância dos fundamentos do assunto. Acrescente-se a esses ingredientes a arrogância juvenil estimulada pelas lisonjas demagógicas da mídia, e tem-se a fórmula média do estudante universitário brasileiro. É impossível discutir com ele. Quando a mente assim deformada entra a produzir objeções numa discussão, seu interlocutor culto e bem-intencionado, se não é muito enérgico no emprego da vara de marmelo, leva desvantagem necessariamente: quem pode vencer um debatedor tenaz que, confiante na aparente correção formal do seu raciocínio, está protegido pela própria ignorância contra a percepção da falsidade das premissas? Com um sujeito assim não cabe argumentar. Cabe apenas transmitir-lhe as informações faltantes — educá-lo, em suma. Mas, precisamente, ele não vai deixar você educá-lo, porque
a ideologia de rebelde posudo que lhe incutiram desde pequeno o faz pensar que é mais bonito humilhar um professor do que aprender com ele. Eis como o menino inteligente se transforma num debatedor idiota, vacinado para todo o sempre contra qualquer conhecimento do assunto em debate.

*Coluna disponível também em meu blog www.jaimecapra.blogspot.com/


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