818 – PERSONAGENS DA CULTURA – 09.12.2022
Por: Jaime Capra
MACHADO DE ASSIS – A Igreja
do Diabo
Uma ideia “mirífica”
(admirável, maravilhosa) - Conta um velho manuscrito Beneditino que o Diabo, em certo dia, teve a
ideia de fundar uma igreja. Embora os seus lucros fossem contínuos e grandes,
sentia-se humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem
organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada. Vivia, por assim
dizer, dos remanescentes divinos, dos descuidos e obséquios humanos. Nada fixo,
nada regular.
Por que não teria ele a sua igreja? Uma igreja do Diabo era o meio eficaz
de combater as outras religiões, e destruí-las de uma vez.
Porque não fundar minha própria igreja? Com
todas as disputas no Céu acho oportuno e vantajoso. Pensando bem, escritura,
breviário, regimento, e sacramentos, poderemos copiar das sessões tradicionais,
os cânones que mais agradam. Assim terei a minha própria sessão com vinho, pão
e um grande número de convidados que pensarão como eu.
Vejamos como estão sendo organizadas as atuais
sessões, sobretudo depois da decisão dos céus de ter um único e verdadeiro Deus
salvador da pátria. Assim pois será a minha igreja, concluiu ele: escritura,
breviário, bíblia. Terei a minha sessão com vinho e pão, minhas prédicas,
bulas, novenas, sacramentos e todos os aparelhos eclesiásticos. O meu credo
será o núcleo universal dos espíritos, a minha igreja uma tenda de manifestantes.
E depois, enquanto as outras religiões se combatem e se dividem, a minha igreja
será única. Não acharei diante de mim nem Maomé, nem Lutero. Acharei mitos
e motes. Há muitos modos falsos de afirmar, mas só um único modo de negar tudo.
Dizendo
isto, o Diabo sacudiu a cabeça e estendeu o braço direito como um gesto
varonil.
Entre Deus e
o Diabo não houve uma conversa amistosa. O diabo, com
os olhos irados, apenas comunicou a ideia de fundar sua própria igreja, em
clima de desafio. Deus recolhia um ancião, quando o Diabo chegou: Que queres tu,
perguntou o Senhor; Não venho pelo vosso servo, respondeu o Diabo, mas por todo
o gado do século e dos séculos; Então explica-te, respondeu o Senhor.
A explicação é fácil, mas recolhei primeiro
esse velho dando-lhe o melhor lugar; Sabes o que ele fez, perguntou o Senhor.
Não, mas provavelmente é um dos últimos que virão ter convosco. Não tarda muito
que o Céu fique semelhante a uma casa vazia, por causa do preço do aluguel, que
é alto. Vou edificar uma hospedaria barata. Em poucas palavras, vou fundar uma
igreja só para mim e meus seguidores. Estou cansado de minha desorganização e
do meu reinado casual. É tempo de obter minha vitória final e completa. E então
vim dizer-vos isto, com lealdade, para que me não acuseis de dissimulação. Boa
ideia, não vos parece?
Vieste dizê-la, não a legitimar advertiu o
Senhor; tendes razão, acudiu o Diabo. Mas o amor-próprio gosta de ouvir o
aplauso dos que acreditam em Fake News; Senhor, desço à terra e vou lançar a
pedra fundamental.
Velho retórico, murmurou o Senhor. Vai, vai, funda a tua igreja, chama
todas as virtudes, recolhe todas as franjas, convoca todos os homens, mas, vai!
Vai!
A boa nova aos
homens. Uma vez na terra, o Diabo não perdeu um
minuto. Deu-se pressa em enfiar as suas regras, como hábito de sua fama, e
entrou a espalhar uma doutrina nova e extraordinária, com uma voz que reboava
nas entranhas do século. Ele prometia aos seus discípulos e fiéis as delícias do
seu reinado, todas as glórias e deleites mais íntimos. Confessava que era o
Diabo para retificar a noção que os homens tinham dele e desmentir as histórias
que contavam seus adversários. Sim, sou o Diabo repetia ele. Não o terror das
crianças, mas o Diabo verdadeiro e único. O Diabo verdadeiro é o outro.
Poucos anos depois, notou o Diabo que muitos
fiéis praticavam as antigas virtudes. Certos glutões comiam três ou quatro
vezes por ano. Muitos avaros davam esmolas. Vários dilapidadores do erário
restituíam pequenas quantias. Os fraudulentos falavam com o coração nas mãos,
mas com o mesmo rosto dissimulado.
A descoberta assombrou o
Diabo. Meteu-se a conhecer mais diretamente o mal, e viu que lavrava muito.
Alguns casos eram incompreensíveis, como o de um droguista que envenenara uma
geração inteira com falsos remédios e falta de atendimento. Em alguns lugares
descobriu auxiliares ladrões. O Diabo deu com deles, lançou o procedimento e ele
negou, dizendo que roubou à vista do Diabo e deu de presente a um parente que espalhou
notícias falsas.
Um dos seus melhores
apóstolos era um falsificador que possuía belas casas. Era a fraude em pessoa.
O Diabo voou de novo ao
céu, trêmulo de raiva, ansioso de conhecer a causa de tão singular
fenômeno. Deus ouviu-o com infinita complacência; não o interrompeu,
não o repreendeu, não triunfou daquela agonia satânica. Pôs os olhos nele, e
disse-lhe: Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodão têm agora
franjas de seda, como as de veludo tiveram franjas de algodão. Que queres tu? É
a eterna contradição humana.
Excertos de Machado de Assis, in... “Contos”. Editora Paz
e Terra, 1996.
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