sexta-feira, 21 de setembro de 2018

A ORIGEM DA BURRICE

A ORIGEM DA BURRICE NACIONAL
Repetidamente um fenômeno tem chamado a atenção de
professores estrangeiros que vêm lecionar no Brasil: por que
nossas crianças estão entre as mais inteligentes do mundo e nossos
universitários entre os mais burros? Como é possível que um ser
humano dotado se transforme, decorridos quinze anos, incapaz de
montar uma frase com sujeito e verbo? É fácil lançar a culpa no
governo e armar em torno do assunto mais um falatório destinado
a terminar, como todos, em uma nova extorsão de verbas oficiais.
Difícil é admitir que um problema tão geral deve ter causas
também gerais, isto é, que não pertence àquela classe de
obstáculos que podem ser removidos pela ação oficial, mas àquela
outra que só nós mesmos, o povo, a “sociedade civil”, estamos à
altura de enfrentar, mediante a convergência lenta e teimosa de
milhões de ações anônimas, longe dos olhos da nossa vã sociologia.
A condição mais óbvia para o desenvolvimento da inteligência
é a organização do saber. Nossas energias intelectuais mobilizam-
se mais facilmente em torno de poucos núcleos de interesse do que
numa dispersão de focos de atenção espalhados no ar como
mosquitos. Discernir o importante do irrelevante é o ato inicial da
inteligência, sem o qual o raciocínio nada pode senão patinar em
falso em cima de equívocos. A cultura na sociedade é resultado de
sucessivas filtragens da experiência acumulada a ponto de ser o
homem um quadro de interesse essencial. Nesse quadro, não
restaria ao indivíduo outra alternativa senão operar neste
“mostruário”, conforme seus interesses pessoais.
Quando se diz que a cultura está impregnada na sociedade,
significa que a seleção dos pontos importantes transparece na
organização das cidades, nos monumentos públicos, no estilo
arquitetônico, nos museus, nos cartazes dos teatros, na imprensa,
nos debates entre as pessoas letradas, nos giros da linguagem
corrente, nas estantes das livrarias e nos programas de ensino.
Quem desembarca num país qualquer da Europa já obtém, por
um primeiro exame desse mostruário, uma visão clara dos pontos
de interesse que constituem um fundo de referência cultural.
Só de andar pelas ruas, o cidadão pode enxergar os marcos
que o situam num lugar preciso do mapa histórico, desde o qual ele
pode medir quanto tempo as coisas duraram e qual a sua
importância para a vida humana.
Se olha para os cartazes dos teatros, nota que certas peças
estão sendo reencenadas este ano porque são reencenadas todos
os anos, ao passo que outras, que fizeram algum sucesso no ano

passado, desapareceram do repertório. Basta isto para que adquira
um senso da diferença entre o que importa e o que não importa.
Ao entrar em qualquer livraria, o contraste entre as estantes
onde estão sempre expostos os mesmos títulos essenciais e
aquelas onde os lançamentos mais recentes se revezam mostra-lhe
a diferença entre o patrimônio escrito de valor permanente e o
comércio livreiro de alta lucratividade.
Na escola, ele sabe que vai aprender coisas que seus pais,
avós e bisavós também aprenderam, e outras que são novidade e
que talvez terão desaparecido do currículo na geração seguinte.
Tudo, no ambiente plástico e verbal contribui para que o
indivíduo adquira um senso de hierarquia e de orientação no tempo
histórico, na cultura, na humanidade.
No Brasil, isso não existe. O ambiente visual urbano é caótico
e disforme, a divulgação cultural parece calculada para tornar o
essencial indiscernível do irrelevante. O que surgiu ontem para
desaparecer amanhã assume o peso das realidades milenares, os
programas educacionais oferecem como verdade definitiva opiniões
que vieram com a moda e desaparecerão com ela. Tudo é uma
agitação superficial infinitamente confusa onde o efêmero parece
eterno e o irrelevante ocupa o centro do mundo. Nenhum ser
humano, mesmo genial, pode atravessar essa selva selvagem e sair
intelectualmente ileso do outro lado.
Largado no meio de um caos de valores e contravalores
indiscerníveis, ele se perde numa densa malha de dúvidas ociosas e
equívocos elementares, forçado a reinventar a roda e a redescobrir
a pólvora.
Nesse ambiente, a difusão das novidades intelectuais, em vez
de fomentar discussões inteligentes, só pode atuar como força
dispersante. Não há nada mais consternador do que uma
inteligência sem cultura, despreparada, nua e selvagem que se
nutre do último show e arrota uma sucessão de perguntas cretinas
onde a sofisticação pedante do raciocínio se apoia na mais
grosseira ignorância dos fundamentos do assunto. Acrescente-se a
esses ingredientes a arrogância juvenil estimulada pelas lisonjas
demagógicas da mídia, e tem-se a fórmula média do estudante
universitário brasileiro. É impossível discutir com ele. Quando a
mente assim deformada entra a produzir objeções numa discussão,
seu interlocutor culto e bem-intencionado, se não é muito enérgico
no emprego da vara de marmelo, leva desvantagem
necessariamente: quem pode vencer um debatedor tenaz que,
confiante na aparente correção formal do seu raciocínio, está

protegido pela própria ignorância contra a percepção da falsidade
das premissas? Com um sujeito assim não cabe argumentar. Cabe
apenas transmitir-lhe as informações faltantes — educá-lo, em
suma. Mas, precisamente, ele não vai deixar você educá-lo, porque
a ideologia de rebelde posudo que lhe incutiram desde pequeno o
faz pensar que é mais bonito humilhar um professor do que
aprender com ele. Eis como o menino inteligente se transforma
num debatedor idiota, vacinado para todo o sempre contra
qualquer conhecimento do assunto em debate.
*Coluna disponível também em meu blog www.jaimecapra.blogspot.com/

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